domingo, 23 de maio de 2010

2666

O romance "2666", com quase mil páginas, do escritor chileno Roberto Bolaño,
se tornou um fenômeno na Europa e nos Estados Unidos

O lançamento do inacabado romance do escritor chileno Roberto Bolaño, falecido em 2003, está previsto para este mês no Brasil. Com quase mil páginas, "2666" transformou Bolaño em uma lenda do mundo literário, e um sucesso na Europa e nos Estados Unidos.
Em "2666", a fictícia cidade de Santa Teresa, com todos os contornos da mexicana Ciudad Juarez, sofre com uma narcoguerra precedida por centenas de assassinatos brutais de mulheres, jamais desvendados e que assolam a região desde os anos 90. As hipóteses para esse bizarro fenômeno se perdem no emaranhado de interesses de quadrilhas, tanto criminosas como institucionais, que se misturam na região.
> Leia um trecho de 2666
Um sonho
Amalfitano sonhou que via aparecer num pátio de mármore cor-de-rosa o último filósofo comunista do século XX. Falava em russo. Ou melhor dizendo: cantava uma canção em russo enquanto o seu corpanzil se deslocava, fazendo esses, em direcção a um conjunto de majólicas listadas de vermelho intenso que sobressaía no plano regular do pátio como uma espécie de cratera ou latrina. (...) Quando o último filósofo do comunismo já estava finalmente a chegar à cratera ou à latrina, Amalfitano descobria com estupefacção que se tratava nem mais nem menos de Boris Yeltsin. É este o último filósofo do comunismo? Em que espécie de louco me estou a transformar se sou capaz de sonhar disparates? O sonho, contudo, estava em paz com o espírito de Amalfitano. Não era um pesadelo. Além disso, proporcionava-lhe uma espécie de bem-estar leve como uma pena. Então Boris Yeltsin olhava para Amalfitano com curiosidade, como se fosse Amalfitano a irromper no seu sonho e não ele no sonho de Amalfitano. E dizia-lhe: escuta as minhas palavras com atenção, camarada. Vou explicar-te qual é a terceira perna da mesa humana. Eu vou explicar-te. E depois deixa-me em paz. A vida é procura e oferta, ou oferta e procura, tudo se limita a isso, mas assim não se pode viver. É necessária uma terceira perna para que a mesa não caia nas lixeiras da História, que por sua vez está permanentemente a desmoronar-se nas lixeiras do vazio. Por isso toma nota. A equação é esta: oferta + procura + magia. E o que é a magia? Magia é épica e também é sexo, e bruma dionísiaca e jogo. E depois Yeltsin sentava-se na cratera ou latrina, mostrava a Amalfitano os dedos que lhe faltavam e falava da sua infância, e dos Urales, e da Sibéria, e de um tigre branco que errava pelos infinitos espaços nevados. Seguidamente tirava uma garrafa de vodka da algibeira e dizia:- Creio que está na hora de beber um copinho.
2666, de Roberto Bolaño, pp. 267-268

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